Artigo – O lugar da pulsão de morte no homem – Jennifer Aline Zanella

Postado por: Aline Maziero

Coautor: Weiny César Freitas Pinto [1]

A compreensão do conceito de pulsão que vibra na teoria freudiana parece central para o entendimento do arcabouço teórico da psicanálise. Recorrendo à definição consensual de pulsão, nos deparamos com a ideia de um impulso, um estímulo inesperado que nos leva a agir de determinada maneira. Talvez, em razão dessa definição, o termo alemão Trieb – termo que o próprio Freud utilizou para designar pulsão – tenha sido traduzido para o português como “instinto” (Tavares, 2013). Sem adentrar no debate teórico e epistemológico sobre as divergências dessa posição, gostaríamos de destacar a importância desse conceito, que se refere a uma força presente em cada indivíduo de forma constante e não apenas momentânea ou pontual.

Esse princípio explicativo não tem importância somente para a psicanálise, mas para a psicologia em geral (Freud, 1915/2013), cujo entendimento permite abstrações na compreensão de como o indivíduo elabora suas escolhas diante da realidade. Isto é: como se constituem os desejos dos homens? Como a moção pulsional leva-nos à busca e à fruição de prazer? O conceito de pulsão e de qual(is) pulsão(ões) atua(m) em nós parece ser fundamental para respondermos a essas questões.

Em Além do princípio de prazer (1920), Freud leva adiante sua reflexão metapsicológica sobre o processo de regulação da vida anímica e elabora um “novo” dualismo pulsional. Até então, as pulsões existentes estavam ordenadas sob o domínio do princípio de prazer. Contrapondo-se a textos anteriores, a discussão centra-se para além do binômio prazer e desprazer. Essa obra, considerada como uma das mais complexas do autor austríaco, introduz mais sistematicamente os conceitos de pulsão de morte e pulsão de vida, que coexistem no organismo e regulam o aparelho anímico. A pulsão de morte seria uma força pulsional que elucida certos elementos cotidianos e fatídicos da nossa existência. Essa pressão exercida mobiliza no aparelho psíquico intensidades de energia dissociadas de qualquer conteúdo representacional que seja fonte e expressão de prazer. Ou seja, a pulsão de morte parece explicar, dentre outras coisas, a repetição constante de certas experiências de sofrimento, de culpa e de agressividade que sentimos recorrentemente.

Para compreender a atuação da pulsão de morte, Freud (1920/2020) utiliza análises empíricas e teorias da biologia que atestam, por exemplo, que toda célula, inevitavelmente, caminha para a morte. Nesses termos, o modus operandi que pressiona o aparelho psíquico à morte – sua autodestruição – não é algo singular do indivíduo humano, mas comum a toda vida orgânica existente. Grosso modo, a pulsão de morte motiva que o organismo retorne ao seu estado originário, ao inorgânico.

Esse processo ocorre por meio de uma pressão exercida pela pulsão de morte que não tem como objetivo o prazer ou a satisfação, mas a autoaniquilação. Em consequência dessa pressão, o organismo busca pela morte, mas não qualquer morte, não uma morte a qualquer custo: uma morte internanatural. O que explica, aliás, a atuação da pulsão de vida no indivíduo, que deseja a preservação do organismo apenas porque almeja uma morte específica e por razões internas (Freud, 1920/2020). A vida é um serviçal da morte, dirá Freud.

Dessa forma, a existência da pulsão de morte se manifesta instaurando uma tensão com a pulsão de vida. O lugar da pulsão de morte no homem é, então, essencialmente, um lugar de tensão. Diante dessa concepção teleológica do ser orgânico, nos questionamos sobre o significado da vida. Como aceitar que a vida seja simplesmente um meio para a morte? Que a morte é inevitável, todos sabemos, mas somos por isso condenados a viver em busca dela?

Nessa perspectiva, o sentido da vida, quando analisado sob a ótica da pulsão de morte, parece-nos encaminhar para um ciclo de repetição de uma história fatalista que apenas traz dor e sofrimento, compulsivamente. O próprio Freud (1920/2020) reconhece que essa ideia traria grande resistência e que também poderia ser considerada controversa, pois “nos habituamos a ver na pulsão o fator que pressiona para a mudança e o desenvolvimento, e agora temos de reconhecer nela justamente o contrário, a expressão da natureza conservadora do ser vivo” (Freud, 1920/2020, p. 131).

De antemão, essa concepção da condição humana não nos levaria a uma análise simplista da vida? Diante da exploração do homem pelo homem e da manutenção da miséria humana no capitalismo, analisar o caminho da barbárie sob o domínio da pulsão de morte apontaria para a manutenção do status quo de um homem meramente animalesco, sem possibilidades de emancipação de uma agressividade inerente ao orgânico.

A recondução teleológica do orgânico ao inorgânico, a interrupção da vida pela morte, que não obstante vincula-se à dissolução da história da humanidade, seria então a única saída diante das perturbações a que estamos acometidos?

Felizmente, não há consenso sobre essa leitura determinista da realidade. Mesmo autores pós-freudianos criticaram essa dualidade pulsional e/ou propuseram outro princípio explicativo dessa força que nos constitui. De todo modo, a proposição de Freud (1920/2020) parece ter ainda grande poder explicativo, especialmente em tempos como o nosso, de ampliação de discursos de ódio e de violência disseminada.

Referências

FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer [Jenseits des Lustprinzips]. Edição crítica bilíngue. São Paulo: Autêntica, 2020.

FREUD, Sigmund. As pulsões e seus destinos. Edição bilíngue. São Paulo: Autêntica, 2013.

TAVARES, Pedro Heliodoro. Sobre a tradução do vocábulo Trieb. In: FREUD, Sigmund. As pulsões e seus destinos. Edição bilíngue. São Paulo: Autêntica, 2013. p. 73-90.


[1] Professor do Curso de Filosofia e do Programa do Pós-graduação em Psicologia da UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atua na área de pesquisa em história da filosofia moderna e contemporânea, com ênfase em filosofia da psicanálise e epistemologia das ciências humanas. E-mail: weiny.freitas@ufms.br.