[Projeto Ensaios] Epistemologia e política: relação necessária e (im)possível?, de Alberto Mesaque Martins.
[Coautor: Weiny César Freitas Pinto[1]]
A necessidade e as (im)possibilidades de distinção entre epistemologia e política, bem como as implicações dessa relação no processo de produção do conhecimento, têm sido temáticas cada vez mais recorrentes e necessárias no âmbito das Ciências Humanas e Sociais. Tal debate se torna ainda mais importante quando consideramos o atual momento acadêmico e científico, no qual estudiosos das Ciências Humanas e Sociais se debruçam sobre a análise crítica do próprio campo, ainda marcado por tensões e embates, fortemente influenciados pelos pressupostos das chamadas “ciências da natureza”, abrindo espaço para discussões que também refletem o modo como os conhecimentos são produzidos e divulgados. Esse debate se torna ainda mais fervoroso no contexto latino-americano, sobretudo a partir da difusão de “novas” perspectivas epistemológicas e metodológicas de produção do conhecimento, como os estudos descoloniais, as investigações anti-imperialistas, as pesquisas identitárias (como os movimentos feministas, LGBTQIA+, raciais, indígenas, etc.), os quais tensionam o campo epistemológico, ao mesmo tempo que sofrem questionamentos de pesquisadores em que se fundamentam em perspectivas mais tradicionais, ou simplesmente mais críticas e rigorosas, como advogam alguns.
É importante destacar que desde a sua constituição como campo independente nos séculos XIX-XX, as Ciências Humanas e Sociais vêm se debruçando sobre objetos e temáticas que tensionam e, muitas vezes, rompem com a clássica suposição de distanciamento entre pesquisador e objeto. Diante dos novos problemas construídos e assumidos pelas Ciências Humanas e Sociais, já não é mais possível ao cientista a garantia de “objetividade” e de “neutralidade”. Não é mais possível ao cientista simplesmente isolar os seus objetos de estudo por meio de práticas em laboratórios, já que o próprio desenvolvimento das Ciências Humanas e Socias exige não apenas novos pressupostos, mas também novos métodos e técnicas de investigação, assim como uma nova postura do pesquisador (DOMINGUES, 2004).
Com efeito, os cientistas se veem diante da impossibilidade de construir análises que excluam sua própria subjetividade, tanto na delimitação dos objetos de estudo quanto na interpretação dos dados e no exame dos resultados, uma vez que os fenômenos investigados passam a ser delimitados a partir da relação que o pesquisador, como um indivíduo inserido no mundo e na história, estabelece com os objetos de investigação (MONTEIRO et al., 2012). Em outras palavras, o estudo do homem e da sociedade exige dos cientistas posturas ético-políticas, disso decorrem problemas ainda hoje não solucionados, tanto do ponto de vista epistemológico, ou seja, em relação à teoria do conhecimento, quanto em relação ao método, isto é, o caminho para que o conhecimento seja alcançado.
Nessa perspectiva, a partir das primeiras décadas do século XX, na Europa, começaram a ganhar força discussões que apontavam para a necessidade de romper com a supressão da história na análise da produção do conhecimento filosófico e científico, remetendo à necessidade de estabelecer o imperativo de sua historicidade. Autores de diferentes campos podem ser situados nesse contexto: Wilhelm Dilthey, Gaston Bachelard, Karl Mannheim, Georges Canguilhem, Ludwik Fleck, Robert Merton, dentre outros. Esses autores chamavam a atenção para a necessidade de as Ciências Humanas e Sociais construírem métodos próprios, que considerassem a complexidade dos fenômenos observados nesse campo. Surgiu aí um novo estilo de pensamento que vem sendo denominado de epistemologia histórica (DOMINGUES, 2004).
A epistemologia histórica surge como uma nova concepção ético-política que apresenta um novo caminho para a produção do conhecimento, a partir da consideração da historicidade do fazer científico (SOUTO, 2019). Assim, a ciência, incluindo o cientista e o próprio fazer científico, é reconhecida como “instituição social”, ou seja, encontra-se intimamente determinada, associada e atravessada pelas circunstâncias históricas, políticas, sociais, econômicas e culturais, contestando, desse modo, os clássicos ideais positivistas da “neutralidade”, da “objetividade” e da “imparcialidade”. Em resumo, a epistemologia histórica resgata a historicidade das ciências indicando a necessidade de interrogações e críticas sobre a figuras sociais do cientista e do fazer científico, reforçando a indissociabilidade entre ciência e sociedade, política e teoria do conhecimento (epistemologia), assim como a necessidade de reflexão sobre as instituições científicas e suas contradições ideológicas (SOUTO, 2019).
Vale destacar que não apenas o pensamento científico, mas também o pensamento filosófico é atravessado e constituído pela política, conforme afirma o filósofo greco-francês Cornelius Castoriadis, para quem a filosofia é um “compromisso com a totalidade do pensável”. A partir de uma crítica à tradição do pensamento filosófico ocidental, incluindo as teorias pós-modernas, Castoriadis propõe a retomada de uma proposta filosófica – talvez hoje abandonada –, já praticada na Grécia Antiga, de uma filosofia que se mistura com a própria concepção de democracia. Nessa perspectiva, torna-se não apenas desnecessário, mas impossível separar conhecimento e conhecer (epistemologia) da vida social (política), compreendida então como parte constitutiva do sujeito.
Em A instituição imaginária da sociedade, Castoriadis afirma que “cada sociedade é uma construção, uma constituição, uma criação de um mundo, de seu próprio mundo” (CASTORIADIS, 1985, p. 31). Nesse sentido, não apenas os fenômenos investigados, mas também o próprio sujeito e o ato de conhecer refletem marcas culturais e políticas. Desse modo, o autor aponta para a necessidade de voltar o pensamento filosófico para a construção de análises que considerem os processos sociais e políticos, contribuindo para novos modos de vida pessoal e coletiva (CASTORIADIS, 1982).
Apesar das importantes contribuições apresentadas pela epistemologia histórica e pelo pensamento de Castoriadis, essas perspectivas colocam novos problemas para o campo das Ciências Humanas e Sociais, por exemplo, o lugar da verdade e do método, assim como suas concepções. Esse tema se torna ainda mais relevante ao considerarmos que, no contexto das epistemologias históricas, a ênfase na historicidade do pensamento pode levar ao historicismo e, por sua vez, ao relativismo epistemológico, isto é, à dúvida da existência mesma da verdade. Uma agenda “historicista” e “relativista” para as Ciências Humanas e Sociais não apenas limitaria a produção de conhecimento, no sentido de sua possibilidade, como também inviabilizaria a reflexão epistemológica, já que colocaria em xeque a própria possibilidade de uma compreensão sistemática do mundo (SOUTO, 2019).
O desafio de uma epistemologia das ciências humanas se torna ainda mais completo quando consideramos a própria noção de “epistemologia”, cuja definição, em alguns casos, apresenta propósitos contraditórios aos da política. Isto é, enquanto a produção científica tradicional se pauta pela busca pela verdade, especialmente por meio da figura rigorosa do “método”, em geral, dogmático, a política se caracteriza essencialmente pelos atravessamentos ideológicos e socioculturais, sem método previsível nem dogma, sob pena de ser totalitária. Em suma: ciência e política mantêm uma relação ao mesmo tempo evidentemente necessária e (im)possível.
Ora, a distinção entre política e epistemologia é de fato necessária? Seria mesmo possível separar ambas as dimensões? Se sim, haveria possibilidades de separação ao mesmo tempo em que fossem garantidas possibilidades de interfaces? Como pensar a produção de conhecimento e de epistemologias, que ao criticarem a própria ciência e seus métodos, levando em consideração a historicidade do fazer científico, não abdiquem das ideias de “verdade” e de “método”, imprescindíveis para a produção do conhecimento científico? O que explica nossa dificuldade em distinguir epistemologia e política e, ao mesmo tempo, considerá-las em uma relação de mútua transformação?
Claro, reconhecemos que essas indagações não resolvem a questão, mas elas apontam a complexidade do problema, cuja solução parece exigir uma abordagem transdisciplinar, capaz de produzir tensões, mas também aproximações e diálogos. Portanto, nesta perspectiva, defendemos a necessidade da relação entre epistemologia e política, sobretudo para que o conhecimento científico não perca a sua fundamentação ontológica e seja reduzido à técnica ou à “bandeira”, com finalidade meramente pragmática e tecnicista. Todavia, também defendemos que essa relação deve ser (im)possível, no sentido de que haja limites da relativização política sobre a epistemologia e da dogmatização epistemológica sobre a política. O que nos parece mais evidente é que tanto a política necessita de contribuições epistemológicas quanto a epistemologia não deve abdicar dos tensionamentos políticos que a direcionam na produção de conhecimentos atentos e conectados ao contexto histórico-social no qual a ciência é produzida.
Referências
CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Trad. Guy Reynaud. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
CASTORIADIS, Cornelius. O domínio social-histórico. In: Os destinos do totalitarismo & outros escritos. Trad. Zila Bernd e EliroFunck. Porto Alegre: L&PM Editores, 1985.
DOMINGUES, I. Epistemologia das ciências humanas. Tomo 1: Positivismo e hermenêutica. São Paulo: Loyola, 2004.
MONTEIRO, L. A.; MUNHOZ, D.; BERTHOLINI, F. Bachelard e a epistemologia histórica: uma vivência sobre a formação do espírito científico. In: ANPAD, 36, 2012. Anais… 2012.
SOUTO, C. O problema do estilo em epistemologia: entre sociologia das ciências e epistemologia histórica. Revista Interdisciplinar em Cultura e Sociedade (RICS), v. 5, n. 2, p. 372-404, 2019.
[1] Professor do curso de Filosofia e da Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). E-mail: weiny.freitas@ufms.br